domingo, 1 de agosto de 2010

Freud e a crítica ao narcisismo moderno

Eustáquio Lagoeiro Nobre


Salvador Dalí, “Metamorfose de Narciso”, 1937

A psicanálise, desde a sua concepção por Sigmund Freud, tem tido influências em áreas como a psicologia, a educação, a medicina e a psiquiatria, mas ainda assim Freud é admitido como autor de uma psicanálise difícil de ser entendida não por uma dificuldade intelectual, mas por uma dificuldade afetiva – “alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente” (FREUD: 171).

A psicanálise é uma teoria que se fundamenta sobre a teoria do recalcamento (repressão de necessidades), significando, também, o método de exploração do psiquismo humano e terapêutica para certas neuroses. Encontramos suas origens talvez nos filósofos do século XIX, que já afirmavam a primazia da vida instintiva, assim como em certos fisiologistas, neurologistas, psicólogos, médicos interessados nos fenômenos da histeria, hipnose etc. Com as observações feitas por estes estudiosos, chegou-se à conclusão de que a vida psíquica ultrapassava o consciente.

Para Freud, o homem é visto dentro de um contexto que abrange toda a realidade humana e seria impulsionado a satisfazer certos instintos elementares ou impulsos tão poderosos que o obrigam a alcançar seus fins, diretamente ou por caminhos tortuosos. “A psicanálise preocupa-se com o esclarecimento e a eliminação dos denominados distúrbios nervosos e o ponto de partida na qual pudesse abordar esse problema; decidiu-se procurá-lo na vida instintual da mente. As hipóteses acerca dos instintos do homem vieram, portanto, a formar a base da nossa concepção de doença nervosa” (ib.).

Freud, ao falar dos instintos, não quer o retorno de uma vida primitiva, como pensam muitos, mas faz-nos compreender e aceitar a nossa realidade de natureza humana; leva-nos a uma compreensão não só de nós mesmos, mas do outro, da vida. Seu conceito de personalidade é dinâmico: a causa dos nossos comportamentos devem ser buscados em forças emocionais.

Para Freud, a personalidade é composta por três sistemas: o ID, o EGO e o SUPEREGO, componentes biológico, psicológico e social. O ID, o inconsciente, abrange todos os impulsos primários, todo o conjunto de conteúdos herdados. O EGO, a consciência, elemento conciliador, solucionador, planejador, intermediário entre o ID e o mundo externo, responsável pela combinação entre a imagem mental e a realidade objetiva, busca o relacionamento com o ambiente. O SUPEREGO, por sua vez, é a consciência moral, o censor. Representa as normas, as exigências e os valores que são transmitidos à criança, principalmente pelos pais, e incorporados a sua personalidade.

Daí, a atividade psíquica ser consciente e inconsciente, sendo a consciente apenas referente à ponta de um iceberg. O homem, portanto, conhece apenas algumas de suas motivações, porque a maioria delas tem suas raízes lançadas no inconsciente. O inconsciente seria a “zona profunda” do nosso psiquismo, da qual nada ou pouco conhecemos, para a qual lançamos idéias, conteúdos e experiências insuportáveis ‘a vivência consciente. Os motivos inconscientes permanecem porque temos interesse em não nos darmos conta deles. Expulsar da consciência certos impulsos não impede, entretanto, que eles existam e se tornem efetivos. Assim, para compreendermos qualquer estrutura de personalidade é necessário reconhecer a existência de impulsos emotivos de natureza antagônica.

Segundo Freud, “O consenso popular distingue entre a fome e o amor como sendo os representantes de instintos que visam, respectivamente, à preservação do indivíduo e à reprodução da espécie. Na psicanálise fazemos uma distinção entre os instintos do EGO, por um lado, e os instintos sexuais, por outro lado” (ib.).

Freud associou os distúrbios neuróticos à função sexual, isto é, para desenvolver ou não uma neurose vai depender da quantidade de sua libido (energia sexual) e da possibilidade de saciá-la e descarregá-la através da satisfação. Os esforços terapêuticos, segundo Freud, com relação às neuroses, obtiveram maior êxito em se tratando de conflito entre os instintos do EGO e os instintos sexuais; pois o EGO nega aos instintos sexuais a satisfação que almejam forçando-os a satisfazer por outras vias que se manifestam como sintomas nervosos (a repressão). Freud não nega que os desejos humanos não sejam meramente sexuais, mas aqui a libido é tarefa principal da psicanálise.

“No início do desenvolvimento do indivíduo toda a sua libido (tendências eróticas, toda a sua capacidade de amar) está vinculada a si mesma – catexiza o seu próprio EGO. É somente mais tarde que, ligando-se à satisfação das principais necessidades vitais, a libido flui do EGO para os objetos externos. Para a libido, é possível desvincular-se desses objetos e regressar outra vez ao EGO. Denomina-se narcisismo a retenção da libido pelo EGO. O indivíduo progride do narcisismo (amor-próprio) para o amor objetal. Porém, determinada quantidade de libido é sempre retida pelo EGO” (id.: 173). Para a completa sanidade, é essencial que a libido não perca essa mobilidade plena – teoria da libido das neuroses.

Tendo isso em vista, Freud afirma que o narcisismo universal dos homens, o seu amor-próprio, sofreu três severos golpes por parte das pesquisas científicas:

a – golpe cosmológico – segundo Copérnico, a terra não era o centro do universo, o que outrora dava ao homem a propensão de se considerar senhor do mundo;

b – golpe biológico – segundo Charles Darwin e seus colaboradores e precursores, o homem não é um ser diferente dos animais ou superior a eles;

c – golpe psicológico – segundo o próprio Freud, “a psicanálise tem procurado a educar o EGO de que a vida de nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o EGO e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança – o EGO não é o senhor da sua própria casa” (id.: 175).

Enfim, a “psicanálise feriu o amor-próprio do homem quando demonstrou a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental, principalmente nas questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas” (id.: 179). Daí não é de se espantar que o EGO não veja com bons olhos a psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela.

De um modo geral, Freud com a sua teoria psicanalítica influenciou de forma significativa o século XX. Dentre os pensadores desse século, Freud talvez tenha sido aquele que mais se destacou no que se refere a atingir um público mais especializado e, bem como, leigos. A sua teoria sofreu inspeções filosóficas, foi criticada, mas ao mesmo tempo inspirou movimentos artístico-literários, a mídia, etc. Freud foi mentor de movimentos de libertação sexual, mudando a compreensão do comportamento de crianças, jovens, adultos, influenciando até mesmo termos na pronúncia cotidiana advindos do vocabulário psicanalítico.

Ou bem ou mal aceita, a teoria freudiana passou a fazer parte de nossas explicações acerca de nós mesmos e de nossos comportamentos. No campo filosófico, é de se perceber que Freud gera uma revolução, ou melhor, um incômodo quando faz pensar o sujeito não mais como senhor de sua própria alma, fazendo com que a filosofia repense o seu conceito de verdade até em sua alteridade.

Referência

FREUD, Sigmund. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud [ESB]). Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 171 – 179.

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